23 de agosto de 2023

Garota ferida — Conto


Era um domingo nublado em São Paulo, às 21 horas, quando a artista plástica Ísis Dias Rumor, 19 anos, entrou no seu apartamento, ao lado do Parque do Ibirapuera, louca, sofrendo os horrores de um massacre. Um riacho incontrolável no rosto atraente, doída por dentro como se tivesse sido varada no peito por um punhal! Inclinada, a mão no ventre, seus gritos ecoavam:
— Ai, que dor, que dor!... Me acuda, meu Pai!...
Foi atirando objetos decorativos contra a parede, as janelas, os espelhos, lançou uma taça ao chão, como num desabafo. Nuno, o irmão português três anos mais velho, que estava de férias na capital paulista, veio do quarto, assustado e largando o tablet, na agonia da interrogação:
— O que se passa, Ísis, o que tu tens?! — Tentava segurá-la. — Diz-me, qual o teu problema?!
Transtornada, o tom de voz da garota se amplificou mais ainda:
— É uma dor, é uma dor, Nuno!... Dói muito, dói!... É uma dor maior que a vida, maior que o mundo, é uma dor!... — Gesticulava como uma doida necessitando de uma dose tripla de sedativo.
Nuno tentava acalmá-la, sentá-la no sofá, mas ela guerreava indomavelmente contra ele. Jogou-o sobre o tapete, rasgou-lhe a manga da camisa e lhe arranhou o rosto.
— Dói muito, dói!...
— Que dor, por que isso, miúda?! — perguntou-lhe, com a mão no arranhão e já revoltado. Tentou novamente segurar os braços dela, abraçá-la.
— Me larga, intrometido!!!
Quis arranhar o rosto dele outra vez, no entanto o irmão se desvencilhou e lhe deu um tapa, fazendo-a cair aos pés de uma meia mesa.
— Chega, Ísis!!!
Silêncio geral após o bramido de Nuno, suado, a face riscada de vermelho, a camisa rasgada, o coração compadecido pelo sangue do seu sangue. Ísis abafou o choro. Nuno ficou de joelhos junto a ela, que desabou no ombro dele. A sala, um Iraque!
— Desculpa, minha irmã... Não uso a violência, tu sabes... Só não vi outro jeito de te frear.
— Perdão, Nuno... Eu é que te peço, eu não queria te agredir...
— Tudo bem, está fixe — falou, repousando a mão nos cabelos corredios dela. — Tudo está em paz agora. Mas diz-me, estou preocupado... O que se passou?
— Ah, meu brother!... — desabafo dramático! — tudo seria tão melhor na vida se não existissem mais homens na face da Terra!...
— Não... — ficou parvo com o motivo. — Estás assim... por causa de um gajo?!
— Ele... ele acabou comigo. O carinha me matou, sabe?... Aquele monstro, ele...
— Ele...? — disse Nuno, querendo que ela continuasse, acalorando-a com um aperto nas mãos.
— Ele não vale nada! Agora, é um inimigo pra mim, eu odeio aquele mané, quero vê-lo comendo capim pela raiz! — Ergueu-se. Caminhou lentamente pela sala, depois virou-se para o irmão. — Ele me feriu, feriu minha alma. Acabou comigo. Tô me sentido a última das pessoas, um farrapo...
Impaciente, Nuno levantou-se, desejando assassinar a dúvida:
— Pares com metáforas! O que foi que o Léo te fez, ele te pôs uma peruca de touro, te traiu? — A impaciência deu lugar à angústia.
Ela estranhou:
— Quem tá falando do Léo aqui? Você pirou total?
— Opa, esperas lá... — ele se surpreendeu. — Não é do Léo, teu namorado, que estás a te queixar?...
— Que Léo que nada! Tô falando do Sylvan Nyll, meu cabeleireiro, ele acabou com meus cabelos, olha aqui! — Sacudiu a cabeça, mostrando o “desastre”: eram castanhos, estavam negros; eram na chapinha, estavam com ondas!
O cabeleireiro havia aproveitado um cochilo da cliente, na cadeira, para mudar seu visual por conta própria. Blackout em Sampa, e a “vítima” deixara o local sem poder se observar ao espelho. No caminho para casa, com a volta da energia elétrica, uma olhadinha no retrovisor interno do carro e o susto pavoroso: o fim do mundo! O resto, já se sabe. Ísis jurou nunca mais voltar ao Sylvan Big Salão!
Nuno, que não percebera a mudança no look da outra, depois da revelação caiu parvo na poltrona. Nesse instante, um carro de propaganda de xampu passou em frente ao prédio espalhando o antigo sucesso musical, composto pelo Arnaldo Antunes e o Jorge Ben Jor:
“Cabelo, cabeleira... 
Cabeluda, descabelada...”
Isso obrigou Ísis a fechar as janelas, odiando. Ela se recostou à parede, chorando como uma insana; Nuno, paralisado, pensava no “megamassacre” que seus ouvidos foram obrigados a suportar.
Problemas, problemas!... Eles viram gigantes ou anões, depende de nós. Do querer de cada um.
Recriação do meu texto original
"A bela ferida", de 2007.

2 comentários:

  1. Gostei do conto ... 👏👏 Já aconteceu comigo uma vez , algo parecido no Salão ... 😄😄😄

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  2. Então você sentiu mesmo na pele o trauma dela... Yes.

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